NavPesq v.1.0

CANAIS DE IRC: exemplos de tribos urbanas?
 Ana Maria Alves Carneiro da Silva
Goiânia - 1997

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 Introdução

O fenômeno do desenvolvimento da Internet configura-se hoje como uma realidade emergente no mundo todo. No Brasil seu crescimento é assustador: em 96, considerado o ano I da Internet no Brasil, o número de usuários pulou de 110 mil em janeiro para mais de 1 milhão em dezembro, o que representa um acréscimo superior a 900%. Mais do que nunca, faz-se necessário estudar os efeitos de sua utilização nas formas de sociabilidade dos usuários brasileiros. Neste texto pretendo discutir uma dessas formas de sociabilidade que acontece nos canais de IRC, tentando analisá-la sob o conceito de neotribalismo de Maffesoli, para perceber até que ponto esta noção explica esta forma de interação.

Porém, antes de entrar na discussão propriamente dita, gostaria de esclarecer alguns conceitos fundamentais, como o de Internet e de ciberespaço, além de apresentar algumas implicações gerais da utilização da informática nas formas de sociabilidade de seus usuários.

Ribeiro entende a Internet como o suporte tecno-simbólico da comunidade transnacional imaginada-virtual. Seu conceito de comunidade imaginada é baseado em Benedict Anderson:

"Benedict Anderson (1991) pode, retrospectivamente, mostrar quão importante foi o ‘capitalismo literário’ para consolidar uma comunidade imaginada que evoluiria para se tornar uma Nação. Posso agora sugerir que o ‘capitalismo eletrônico-informático’ é o ambiente necessário para o desenvolvimento de uma transnação".

Assim, a Internet seria a base principal para a emergência de uma comunidade transnacional, formada por vários segmentos, com uma cultura e um espaço próprios. No entanto, penso que a Internet não pode ser entendida como um sistema único, nem mesmo em sua estrutura técnica. Não se trata de uma rede mundial, mas de uma infinidade de redes ligadas pelo mundo inteiro, que só "têm em comum um conjunto de protocolos e serviços, de forma que os usuários a ela conectados podem usufruir de serviços de informação e comunicação de alcance mundial". E esta estrutura repete-se em se tratando das formas de sociabilidade; em pesquisa recente sobre a visão de mundo e formas de sociabilidade dos usuários de produtos de informática, pude verificar que a utilização do computador ao mesmo tempo em que cria novas formas de sociabilidade, mantêm e sustenta outras já existentes, seja no mundo real, seja no mundo virtual. E isto é o mais fascinante no ciberespaço. Ele possibilita uma infinidade de tipos de interações, que podem ser superficiais ou profundas, únicas ou continuadas, levar as pessoas a se encontrarem na "vida real" ou não...

Ao invés de compreender a Internet como base de uma comunidade com vários segmentos, penso que seria mais correto percebê-la como a base não de uma, mas de infinitas comunidades descentralizadas e fragmentadas, cujos membros aparentemente não se percebem como parte de uma mesma transnação.

O ciberespaço é entendido aqui no sentido dado pelo sociólogo André Lemos como o conjunto de redes de computadores interligadas ou não em todo o planeta. É um espaço imaginário transnacional que não é desconectado da realidade, mas ao contrário, é parte fundamental da cultura contemporânea. Meu pressuposto é, portanto, que as pessoas levam para a rede a sua forma de vida real, pois, como já disse, o ciberespaço não se constitui como um mundo paralelo, dissociado da "vida real", mas como algo que complementa ou "complexifica o real, aumentando suas dimensões a partir da inserção de um novo âmbito". Assim, quem tem a tendência a interagir de forma individualista o fará assim também na Internet, e quem tem a tendência a se agrupar, terá a oportunidade de construir comunidades também.

Durante minha pesquisa, pude perceber que a participação na "cultura da informática", entendida aqui como forma cultural, propiciou o desenvolvimento de diferentes formas de sociabilidade, como já disse acima. Em primeiro lugar, percebi que a informática para alguns dos informantes tem servido para facilitar e sustentar algumas relações, sejam elas profissionais ou pessoais, que já existiam e que foram estabelecidas em outras esferas da vida social que não a informática. É o caso de uma das entrevistadas que costuma comunicar-se constantemente por e-mail com sua irmã que mora nos Estados Unidos e com amigos que fez na França, quando estava fazendo o doutorado. Para ela, o computador representa uma importante ferramenta para estas relações, pois caso não dispusesse deste instrumento, dificilmente poderia mantê-las. O fato da utilização do computador sustentar estas relações significa que, ao contrário de muitas idéias do senso comum, a informática não vai contra as formas tradicionais de interação social, servindo para reforçá-las algumas vezes. Como discutirei mais à frente, isto advém da capacidade que as redes de comunicação mediada por computador (RCMC) possuem de imitar/simular essas formas tradicionais, além da idéia que expressei acima sobre o ciberespaço ser um elemento não dissociado da vida real dos usuários, mas algo que a complexifica.

Em segundo lugar, para alguns entrevistados, a informática propiciou o surgimento de diversas relações, duradouras ou não, com pessoas ligadas à área da informática. Também aparecem referências a uma forma associativa que a informática teria propiciado indiretamente há alguns anos atrás, quando a posse de microcomputadores era restrita. Nestes momentos, os poucos usuários costumavam se ajudar mutuamente formando grupos relativamente estáveis. Afirma uma das informantes:

"...não sei se hoje ainda é isso, mas quando tinha pouquíssima gente usando computador, a gente se conhecia em Goiânia, quem tinha um TK 3000 a gente conhecia, porque todo mundo comprava na Radelgo, era o único lugar que tinha, então a gente se ajudava muito um ao outro, então era assim um tipo de solidariedade fantástica, hoje já não é tanto, mas mesmo assim tendo um problema, tem um colega, a gente se ajuda muito, mesmo às vezes você nem conhece direito a pessoa..."(IR, Goiânia, 16/01/97)

 

E em terceiro lugar, o computador é utilizado também para criar novas relações, sejam pessoais ou profissionais, através dos grupos de discussão, IRC, vídeoconferência e e-mail. Nas entrevistas aparecem tanto referências a relações efêmeras como a interações continuadas que resultaram na formação de grupos relativamente estáveis. Para um dos entrevistados, as amizades que fez através do computador são frágeis e inconstantes. Afirma: "(Entrevistadora) E você já fez amizades na Internet?

(Entrevistado) Nossa, eu faço bastante. Você fala amizades virtuais ou amizades reais?

(Entrevistadora) os dois tipos...

(Entrevistado) eu já fiz os dois, eu conheço pessoas aqui em Goiânia, já fiz uma lá dos Estados Unidos que era daqui de Goiânia e encontrei com ela e a gente troca correspondência, uma lá da Holanda que assim, eu dei uma desligada dela agora, mas isso é normal, na Internet assim você conhece uma pessoa por um tempo e depois você desliga rápido, não é aquela amizade, amigo mesmo, só aquela troca de idéias e acabou...são amizades virtuais, são pessoas que você não conhece, que você nunca viu, então, não tem como criar alguma coisa mais forte entre as pessoas." (SA, Goiânia, 24/10/96)

 

Já para outro entrevistado, concomitantemente com as relações efêmeras, o ciberespaço pode propiciar o surgimento de relações estáveis, que podem chegar a constituir grupos, cujos membros mantêm relações constantes e reúnem-se inclusive na "vida real". Estas duas formas de sociabilidade aparecem na seguinte fala do informante: "... [as relações] duram... eu tenho amigos que desde a época que eu comecei a conectar, que era muito difícil conectar, tinha poucas pessoas conectadas, então assim, quem estava na rede... ou precisava de ajuda ou era experiente, já sabia o que estava, o que podia fazer, e essas pessoas na época se interessavam em ajudar quem estava. Então tenho amigos dessa época que até hoje a gente se comunica e até alguns eu conheço pessoalmente tal, e outros não, a gente só se comunica por e-mail tal...

... e eu tenho... uma turma de amigos muito boa na Internet... de tempos em tempos a gente marca um encontro na cidade de um dos que tão no Brasil, às vezes os que tão fora vem para cá, já aconteceu isso umas duas, três vezes, os que tão fora vim dois ou três para ir pro encontro que a gente faz na casa de alguém, e é uma turma de amigos assim muito unida, o pessoal da vídeoconferência, a gente, acho que é por isso, pelo fato de um tá vendo o outro a cumplicidade é maior...

...grupo de discussão... mas é mais relacionado a questões técnicas de programas que eu utilizo e tal, não chega a ser um grupo de amigos, tá, porque é gente do mundo inteiro, tem assim, aquelas pessoas que eu me identifico, e a gente, que tem mais ou menos os mesmos problemas e as mesmas soluções, e a gente meio que se junta para... levar o assunto, levar a discussão para outro lado."(DE, Goiânia, 02/04/97)

 

Por estes três trechos de sua entrevista, o informante dá a impressão de que para ele a forma de sociabilidade varia de acordo com o meio utilizado: a vídeoconferência permite a formação de relações mais duradouras porque há um contato maior, enquanto que os grupos de discussão, por possuírem uma discussão mais técnica no seu caso, não possibilitam esta forma de interação. Então, para uma infinidade de ferramentas corresponderia uma infinidade de formas de sociabilidade determinadas pelas limitações de cada ferramenta. Esta noção encontra-se também em Marc Smith, um dos mais antigos pesquisadores do ciberespaço. Para ele: "Computer-mediated communication is not a unitary thing; there are a variety of communication tools, each with a particular set of capacities and limitations. An overview of the range of social interaction media available on the net: email, discussion lists, conferencing systems (particulary Usenet), MUDS, chat (particularly IRC), graphical ‘worlds’. Each has different structural qualities that shapes the kind of communication that takes place and social organization that emerges."

 

No entanto, vários exemplos vêm mostrar que a técnica não é determinante, pois podem surgir formas de sociabilidade estáveis, caracterizadas muitas vezes pelo contato face a face esporádico, a partir de canais de IRC, como o #goiania da rede Brasnet; de grupos de discussão, como os exemplos da WELL que nos dá Howard Rheingold e através da vídeoconferência, como nos fala o entrevistado acima. São ferramentas com recursos diversos: na vídeoconferência é possível ver as outras pessoas com quem se está interagindo, no canal de IRC a interação acontece através de textos em tempo real e nos grupos de discussão a interação ocorre como num painel de recados, em tempo assincrônico. Como já falei acima, isso é possível porque as RCMC não impõem uma estrutura rígida para a sociabilidade, mas tentam copiar a estrutura das formas convencionais. Para o antropólogo Jayme Aranha, a maleabilidade das redes explica porque elas são facilmente assimiláveis, pois conseguem implementar cópias eletrônicas de outras instituições existentes. Afirma: "Esta tecnologia pretende-se uma máquina universal, capaz de simular qualquer processo computável através do mesmo suporte. A idéia é que inclusive todos os processos sociais formalizáveis possam encontrar a sua reinscrição adequada no espaço eletrônico. Ao invés de impor-se como uma tecnologia que obrigaria ao abandono das velhas formas de interação social em prol de outra, ditada pelas imposições e restrições técnicas do novo meio, as redes informáticas pretendem-se folha em branco, plenamente moldável, capaz de assimilar qualquer outro modo cognitivo retraduzido na sua linguagem generosa."

 

 

No entanto, esta questão suposta da limitação da sociabilidade imposta por cada ferramenta seria um bom problema de pesquisa. Seria interessante fazer a comparação das formas de sociabilidade proporcionadas por duas ferramentas bem diferentes, como por exemplo um canal de IRC e um canal de vídeoconferência, para perceber as diferenças dos grupos que são formados. Estes últimos vêm comumente sendo chamados de comunidades virtuais.

Mas o que seriam exatamente estas comunidades virtuais? Howard Rheingold dá uma primeira dica. Para ele, quando um grupo de pessoas permanece interagindo através das RCMC por extensos períodos, surge a questão sobre se este agrupamento seria uma comunidade. Afirma:

"Virtual communities might be real communities, they might be pseudocommunities, or they might be something entirely new in the realm of social contracts, but I believe they are in part a response to the hunger for community that has followed the disintegration of traditional communities around the world."

 

Portanto, para Rheingold o surgimento de algo semelhante à idéia de comunidade na CMC seria uma resposta para o crescente desaparecimento de espaços públicos de convivência no mundo atual. Mas será que podemos chamar de comunitárias as relações que se estabelecem por intermédio de computadores entre pessoas que na maioria das vezes nunca se viram, se tradicionalmente para as Ciências Sociais "o termo abrange todas as formas de relacionamento caracterizadas por um grau elevado de intimidade pessoal, profundeza emocional, engajamento moral, coerção social e continuidade no tempo"? Será que estaríamos assistindo como no século XIX a um renascimento da idéia de comunidade no ciberespaço como indica Rheingold?

André Manta e Luiz Henrique Sena respondem que sim. Para eles, o conceito de comunidade teria sofrido uma mudança na passagem da modernidade para a pós-modernidade. O momento atual seria uma época de transição dos ideais modernos (racionalização, progresso, planejamento do futuro) para os ideais pós-modernos (imaginário, cultura do sentimento, sensibilidade, solidariedade, religiosidade). O conceito clássico de comunidade, caracterizado pelo sentimento de pertença, permanência, territorialidade, crença nas relações genuínas e verdadeiras, o ideal do projeto comum e a existência de uma forma própria de comunicação entre seus membros seria substituído na análise destas novas comunidades pela noção de neotribalismo de Maffesoli. E é esta utilização que pretendo discutir frente a um exemplo de comunidade virtual: os canais de IRC das redes brasileiras.
 

Canais de IRC: exemplos de tribos urbanas?
 

Segundo, Maffesoli estaríamos vivendo a passagem da modernidade para a pós-modernidade, como já falei, e assistindo, ao lado da crescente massificação, ao desenvolvimento de microgrupos com ideais comunitários, que se acreditava terem sido ultrapassados. Após o período de desencantamento do mundo, estaríamos vivendo um reencantamento do mundo que teria como cimento principal uma emoção ou sensibilidade vivida em comum. Neste momento de transição, o autor afirma que:

"a heteronomia do tribalismo está substituindo a autonomia (individualismo) do burguesismo... Chegamos agora, e isso é uma das características das cidades contemporâneas, à presença da dialética massas-tribos. Sendo a massa o pólo englobante, e a tribo o pólo de cristalização particular, toda a vida social se organiza em torno desses dois pólos num movimento sem fim."

 

Os microgrupos são comunidades cuja razão de existir não é um projeto determinado, mas a própria vontade de estar junto com pessoas que têm um mesmo determinado interesse, "a efetuação in actu da pulsão de estar-junto". Em alguns momentos pode existir um projeto, mas ele não é a razão de existir da comunidade. Seu conceito de tribo é baseado no conceito weberiano de comunidade emocional. caracterizada pelo "aspecto efêmero, a ‘composição cambiante’, a inscrição local, ‘a ausência de uma organização’ e a estrutura cotidiana." Para o autor, a metáfora da tribo "permite dar conta do processo de desindividualização, da saturação da função que lhe é inerente, e da valorização do papel que cada pessoa (persona) é chamada a representar dentro dela." (grifo do autor)

Esta forma de sociabilidade está baseada na situação face-a-face e na fusão da massa que cria uma união em pontilhado, que não significa uma presença plena no outro, mas antes estabelece uma relação oca, que Maffesoli chama de relação táctil: "na massa a gente se cruza, se roça, se toca, interações se estabelecem, cristalizações se operam e grupos se formam". Além disso, estas comunidades são baseadas no costume, entendido como o "conjunto dos usos comuns que permitem a um conjunto social reconhecer-se como aquilo que é. Trata-se de um laço misterioso, que não é formalizado e verbalizado, como tal, senão acessória e raramente (os tratados de etiqueta ou de boas maneiras, por exemplo)". Em resumo, no conceito de neotribalismo estaria pressuposto a efemeridade, o ideal comunitário, a ausência de um projeto definido, a interação entre pessoas e não entre indivíduos, a composição cambiante, a ausência de uma organização, a inscrição local, a interação face-a-face e o costume.

Vejamos portanto se este conceito é um bom instrumento para a análise das comunidades virtuais presentes nos canais de IRC. Abaixo tem-se uma descrição resumida do que seria esta ferramenta.

 

"IRC é sigla para "Internet Relay Chat" ("Conversa Retransmitida pela Internet"). Foi originalmente escrita por Jarkko Oikarinen em 1988. Desde o seu começo na Finlândia já tem sido usado em mais de 60 países pelo mundo... O IRC é um sistema de conversa multi-usuário, onde as pessoas encontram se em "canais" (salas, locais virtuais, geralmente com um certo tópico de conversação) para conversar em grupos, ou privadamente. Nele não existe restrições em relação ao número de pessoas que podem participar em uma conversação, ou o número de canais que podem ser formados no IRC." Estando conectadas em uma determinada rede, antes de entrar nas salas, as pessoas escolhem um nickname através do qual entrarão em interação com as demais. Elas podem escolher um canal dentre as centenas que já existem, como também podem criar seus próprios canais. As conversas são mediadas por operadores, chamados simplesmente de ops, que podem expulsar as pessoas que consideram que estejam incomodando a conversação. Os operadores são escolhidos pelos masters ou os proprietários de cada canal em função do seu comportamento e conhecimento técnico.

Embora esta ferramenta tenha sido elaborada para permitir a conversação entre vários usuários sem restrições em relação ao número de pessoas e ao conteúdo das conversas, rapidamente seus freqüentadores criaram indicações para o comportamento nos canais, que compõem a chamada netiqueta, que logo se transformaram em regras rígidas, visando o bom andamento da interação. Estas normas proíbem os usuários de fazerem flood (excesso de mensagens em um curto intervalo de tempo, que sobrecarrega os servidores e torna a rede lenta), xingarem, usarem nicks de outras pessoas, fazerem propagandas de outros canais e redes e falar em temas em desacordo com a natureza do canal. O não cumprimento dessas regras implica em várias punições, tais como o usuário ser kickado (isto é, expulso temporariamente) ou banido do canal. No entanto, apesar de haver regras, a arbitrariedade também está presente no comportamento dos ops, pois eles podem kickar ou banir quem quiserem, não precisando justificar sua atitude a nenhuma autoridade oficial. Quando um usuário é banido, ele deve procurar o op responsável por isso e negociar com ele o desbanimento. Acima dos operadores, mas sem interferir na suas atividades, estão os Ircops, que são os operadores dos servidores de IRC responsáveis pela manutenção das conexões entre os servers para manter a rede nas melhores condições possíveis.

Além destas restrições, existe a possibilidade de se criar canais privados, onde só podem entrar pessoas convidadas. Para os usuários que não se conformam com as regras de um determinado canal, o conselho dos ops é que criem seus próprios canais.

Os canais de IRC são voláteis, isto é, desaparecem assim que a última pessoa sai deles. Eles permanecem nesta situação até serem registrados nas redes ou até seus freqüentadores conseguirem um bot, que é um software que mantém o canal funcionando independente de haver alguém conversando neles. Com o passar do tempo, os freqüentadores de um canal elaboram uma organização própria, decidem quem vão ser os operadores e as regras que deverão ser seguidas. Assim, o canal passa a ter uma cara própria, às vezes, "materializada" em uma home page na WWW onde geralmente se pode encontrar um cadastro dos seus usuários, uma revista com as fofocas do que acontece, a agenda dos IRContros, fotos dos usuários e links para as páginas pessoais dos freqüentadores.

Ao lado da convivência virtual, em muitos canais há regularmente IRContros, isto é, reuniões em bares, boates, churrascarias ou na casa de algum dos freqüentadores, onde todos se encontram e se conhecem pessoalmente. Dessa forma, as relações iniciadas no ciberespaço podem se consolidar na vida real.

O conceito de Maffesoli abarca muitas das características destas comunidades. Os freqüentadores dos canais não aparentam ter um projeto voltado para o futuro, mas apenas desejam conversar despreocupadamente com outras pessoas que como eles partilham um mesmo determinado interesse. Seria um bom exemplo da "efetuação in actu da pulsão de estar-junto" e da afinidade eletiva, isto é, da interação com pessoas que se interessam por um mesmo tema. As regras de netiqueta funcionariam como uma espécie de costume que uniria todos, se entendemos costume aqui como a idéia de moderna tradição de Ortiz, algo novo mas que se impõe como tradição.

O conceito compreende bem o aspecto efêmero, visto que os canais são voláteis, inclusive tecnicamente, e seus freqüentadores não são, na sua maioria, assíduos ou permanentes, pois têm centenas de opções de canais e também podem criar os seus próprios. Além disso, a utilização dos nicks permite que se entre nos canais cada hora com uma máscara diferente, o que aumenta a efemeridade.

Entretanto, alguns dos pressupostos do conceito de neotribalismo não se verificam. Estas interações não tem por base o contato face-a-face, a fusão na massa onde se pode tocar as pessoas, para daí surgirem grupos. A situação face-a-face pode acontecer a posteriori. E também não há a inscrição local, pois grande parte dos canais abriga pessoas de lugares geograficamente distantes, inclusive aqueles com nomes de cidades, estados e países. A menos que entendamos o termo local como um espaço de proximidade, seja ele real ou virtual, como fazem Manta e Sena, noção que é indicada também por Maffesoli. Para eles, nas comunidades virtuais "a territorialidade deixa de ser geográfica e passa a ser simbólica. Desta forma, as relações sociais são mediadas pela tecnologia e o contato físico passa a ser irrelevante". No entanto, parece-me que a territorialidade é um dos pontos fundamentais do conceito de Maffesoli, pois todos os modelos que propõe como paradigmáticos das tribos urbanas (o modelo religioso tipo-seita, a máfia, a noção de bairro) têm o localismo como base. Assim não se poderia fazer tamanha relativização com o conceito de neotribalismo. Mas por outro lado, a rápida disseminação de canais com nomes geográficos nas diversas redes poderia ser um indicador de uma busca renovada da inscrição local.

O ponto que considero mais inadequado para tratar as comunidades de IRC é a idéia de "ausência de organização". Assim como as seitas não teriam necessidade de uma organização social visível e um aparelho burocrático forte, as tribos escapariam a qualquer espécie de centralidade e até de racionalidade. Penso que esta noção seja inadequada porque os canais, longe de serem inorganizados, são espaços bem estruturados, hierarquizados e com regras definidas e conhecidas de todos. Há possibilidade de registrar os canais e os nicknames, e aqueles canais não registrados podem ser desativados por outros usuários. Além da diferença entre Ircops e ops de canais, chamados chanops, há uma clara hierarquia em cada uma destas categorias. Entre os Ircops, há os Ircops globais master, os Ircops globais e os Ircops locais, cada um com funções específicas. E entre os chanops, há os owner/founder, que são os donos do canais e que podem fazer praticamente o que quiserem, desde nomear ops e masters até mesmo acabar com o canal; os masters podem nomear ops para o canais, e até outros masters, em último caso, e decidem as regras do canal em acordo com o owner , e por fim os ops, que são nomeados pelos masters e não podem nomear outros ops registrados, embora possam dar op a alguém do canal, mas sua função é meramente manter o controle do canal. Em alguns momentos em que acontecem problemas técnicos, os servidores não reconhecem os operadores dos canais e assim não lhes fornecem acesso aos comandos de kickar e banir os indesejáveis. Nestas horas, os usuários não se tornam nem um pouco responsáveis por todos e por cada um, e fazem todas aquelas coisas que são proibidas pelas regras dos canais: fazer flood, xingar e ofender os demais, fazer propagandas de outros canais e redes, etc. Os usuários costumam representar estas ocasiões com a imagem de caos.

A organização dos canais pode ainda incluir um projeto, como o #ajuda, que existe, como o nome diz, para auxiliar todos que precisem. Outro exemplo, são os canais onde se reúnem os hackers para trocar informações e discutir softwares. É preciso lembrar no entanto que estes projetos não são bem projetos voltados para o futuro, no sentido do modelo religioso ou dos projetos políticos, mas de certa forma estes canais têm finalidades e utilidades.
 

Considerações Finais

Neste texto, procurei argumentar que a Internet não pode ser pensada como uma totalidade, mas como algo descentralizado e fragmentado, que suporta a emergência de infinitas formas de sociabilidade. Entre estas formas, destacam-se as comunidades virtuais, das quais procurei analisar uma particularmente, as comunidades das redes de IRC.

Também procurei mostrar que o conceito de neotribalismo de Maffesoli é um instrumento limitado para analisar as comunidades que surgem em ambientes de IRC, principalmente aquelas que com o passar do tempo tendem a se institucionalizar. Elas adquirem um núcleo de freqüentadores assíduos, que mantêm contatos estreito e possuem um conjunto de regras específicas com pessoas designadas a executá-las. Na verdade, o conceito de Maffesoli não visa apreender esta situação, pois ele foi elaborado para compreender o vitalismo social, desta época de transição da modernidade para a pós-modernidade

No entanto, esta análise deve ser complementada com pesquisas empíricas, visto que o fenômeno IRC no Brasil é ainda recente e vem crescendo exponencialmente.

 
NOTAS

1- FOLHA DE SÃO PAULO. Febre da Internet afeta 1 milhão no país, 25/12/96 p.3-1.

2- Sigla de Internet Relay Chat, serviço que possibilita a comunicação escrita on-line entre vários usuários pela Internet. É a forma mais próxima do que seria uma "conversa escrita" na rede. (Glossário Internet disponível em http://www.netds.com.br/portug/glossario.htm).

3- RIBEIRO, Gustavo Lins. Internet e a Emergência da Comunidade Imaginada Transnacional. Brasília: Departamento de Antropologia, UnB, 1995. p.5 (Série Antropologia n.198).

4- GUIA INTERNET DE CONECTIVIDADE, 3ed. março de 1997, Cyclades Brasil

5- Pesquisa que realizei como bolsista do PIBIC sob orientação do Prof. Dr. Francisco Chagas Evangelista Rabelo entre agosto de 1995 e julho de 1997.

6- LEMOS, André L.M. "As Estruturas Antropológicas do Cyberespaço". http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos/estrcy1.html (13/08/97).

7- MANTA, André & SENA, Luiz H. "As Afinidades Virtuais: a sociabilidade no Videopapo". http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/videopap.html (13/08/97).

8- É importante lembrar que embora o entrevistado refira-se a grupos de discussão de questões técnicas relativas à informática, existem grupos de discussão sobre tudo que se possa imaginar, onde as interações entre seus membros atingem níveis diferenciados de intimidade.

9- SMITH, Marc. "Week 1" S098 Sociology of Cyberspace. http://www.sscnet.ucla.edu/soc/classes/s098/ (06/08/97).
os símbolos & e # à frente de um nome significam canal, sendo que & refere-se aos canais restritos ao servidor do usuário e # aos canais globais.

10- O #goiania foi fundado há mais de um ano e hoje congrega cerca de 70 usuários mais ou menos fixos que se reúnem esporadicamente.

11- RHEINGOLD, Howard. A comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva, 1996. (col. Ciência Aberta)

12- ARANHA, Jayme. "Tribos Eletrônicas: usos & costumes". Anais do Seminário Preparatório sobre aspectos Sócio-culturais da Internet do Brasil http://www.ibase.org.br~/esocius.anais.html

13- RHEINGOLD, Howard. "A slice of my life in my virtual Community." Big Dummy’s Guide to Internet. http://math.sunsysb.edu/big~dummys/bdgtti-1.04_20.html#SEC210. (01/08/97)

14- NISBET, Robert A., Comunidade. In: FORACHI, M. M. & MARTINS, J. S.[org.] Sociologia e Sociedade: Leituras de introdução à Sociologia. 13ª tiragem. Rio de Janeiro: LTC, 1988. p. 255.

15- MANTA, A. & SENA, L. H. "As Afinidades Virtuais: a sociabilidade no Videopapo." op. cit.

16- MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. p. 42.

17- Idem, p.175-176.

18- Idem, p. 23.

19- Idem, p. 17.

20- Idem, p. 9.

21- Idem, p.102.

22- Idem, p.31.

23- Descrição retirada do "Manual de IRC", uma espécie de compilação de diversas fontes da web feita por Tjerk Vonck e traduzida por Walber Cardoso da Costa, ou simplesmente _Mentor_, operador do canal #brasil da rede Brasnet.

24- Desde abril de 1996 o Brasil possui suas próprias redes de IRC. Hoje há 3 grandes redes (Brasirc, Brasnet e Brasilnet) e inúmeras menores.

25- INTERNET WORLD. Nem só de WEB, E-MAIL e NEWSGROUPS vive a Internet... Rio de Janeiro. Mantelmedia, v.2, nº16, p.110, dez/96.
Mais regras podem ser encontradas no seguinte endereço: http://www.netgo.com.br/ canalgo/dica.html

26- Computador que administra e fornece programas e informações para os outros computadores conectados

27- Exemplos de home pages: #goiania-Brasnet (http://www.netgo.com.br/canalgo/), #jampa-Brasnet (http://www.jampa.com.br/irc/), #bahia-Brasirc (http://www.ircbahia.com. br /bahia/). #11-14-Brasnet (http://www.geocities.com/broadway/1838/11_14.html), #coroas-Brasnet (http://www.geocities.com/SouthBeach/Marina/8877/), #gaybrasil-Brasnet (http://www.geocities.com/WestHollywood/2648/frame.html), #rodeio-Brasirc (http://www.geocities.com/Area51/Zone /4089/indrod.htm)

28- ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988.

29- MANTA, A. & SENA, L. H. "As Afinidades Virtuais: a sociabilidade no Videopapo." op. cit.

30- MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos. op. cit., p. 120.

31- SILVA, Ana Maria A. C. Participação em chat no #ajuda-Brasnet, (13/08/97).

 
BIBLIOGRAFIA* ARANHA, Jayme. "Tribos Eletrônicas: usos & costumes". Anais do Seminário Preparatório sobre aspectos Sócio-culturais da Internet do Brasil http://www.ibase.org.br~/esocius.anais.html   FOLHA DE SÃO PAULO. Febre da Internet afeta 1 milhão no país, 25/12/96 p.3-1.

GUIA INTERNET DE CONECTIVIDADE, 3ed, março de 1997, Cyclades Brasil.

INTERNET WORLD. Nem só de WEB, E-MAIL e NEWSGROUPS vive a Internet... Rio de Janeiro. Mantelmedia, v.2, nº16, p.106-110, dez/96.

LEMOS, André L.M. "As Estruturas Antropológicas do Cyberespaço." http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos/estrcy1.html (13/08/97)

MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

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NISBET, Robert A., Comunidade. In: FORACHI, M. M. & MARTINS, J. S.[org.] Sociologia e Sociedade: Leituras de introdução à Sociologia. 13ª tiragem. Rio de Janeiro: LTC, 1988. p. 255-262.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988.

RIBEIRO, Gustavo Lins. Internet e a Emergência da Comunidade Imaginada Transnacional. Brasília: Departamento de Antropologia, UnB, 1995. (Série Antropologia n.198).

RHEINGOLD, Howard. A comunidade Virtual. Lisboa: Gradiva, 1996. (col. Ciência Aberta).

RHEINGOLD, Howard. "A slice of my life in my virtual Community." Big Dummy’s Guide to Internet. http://math.sunsysb.edu/big~dummys/bdgtti-1.04_20.html#SEC210(01/08/97)

SMITH, Marc. "Week 1" S098 Sociology of Cyberspace. http://www.sscnet.ucla.edu/soc /classes/s098/(06/08/97).
 

*Os textos eletrônicos foram citados conforme as regras de WALKER, Janice R. MLA-Style Citations of Electronic Sources (08/09/06) http://www.cas.usf.edu/english/walker/mla.html(14/08/96) que foi endossado pela Alliance for Computers and Writing (ACW) dos Estados Unidos.

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